Folha de SP- 10/9/00-
caderno Mais
A QUERELA DAS PATENTES BIOLÓGICAS
Edgar Dutra
Zanotto*
especial para a Folha
Conforme previsto pelo polêmico economista Joseph
Schumpeter, ingressamos na quinta onda tecnológica, capitaneada por
informática, telecomunicações e biotecnologia - esta última um campo de
pesquisa em ebulição, com as recentes descobertas de milhares de genes e pelo
sequenciamento de dezenas de genomas. Estas descobertas prometem resultar em
excitantes aplicações em terapia gênica, detecção precoce e cura de doenças.
Como dizem os entusiastas, poderão ser a panacéia para diminuir o sofrimento e
prolongar a vida.
Os avanços na biologia molecular têm despertado o
interesse da imprensa e do público para o papel da ciência no bem-estar da
humanidade. Empresas biotecnológicas e farmacêuticas estão à espreita de
receitas bilionárias, que poderão advir de novas terapias e medicamentos. Essas
descobertas despertam acaloradas discussões, contando até com a intervenção do
presidente dos Estados Unidos e do premiê da Inglaterra sobre os aspectos
éticos da proteção intelectual e do patenteamento de seres vivos ou partes
deles, como genes e genomas.
Quem "fabricou" os genes, suas combinações e
funções? Foram projetados e sintetizados pelo homem ou já existiam e apenas
foram descobertos? Mesmo que, do ponto de vista conceitual e ético, os genes - com
ou sem função conhecida - não devessem ser patenteados, empresas e
pesquisadores dos países centrais estão depositando milhares de patentes de
genes (a Celera Genomics alude a 6.500).
No Brasil, o tema reveste-se de significativa
importância, por causa do sucesso de um grupo de aproximadamente 60
laboratórios paulistas que, num esforço coordenado e financiado pela Fapesp
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), em apenas dois anos,
inseriu o país no cenário mundial da pesquisa genômica. Eles conseguiram mapear
e sequenciar os genes da bactéria Xylella
fastidiosa, causadora da doença do amarelinho, que devasta mais de 30% dos
laranjais paulistas.
O grupo também está avançando no sequenciamento de genes
expressos (ativados) em cânceres humanos de maior incidência no país, de genes
relacionados ao metabolismo da cana-de-açúcar e do genoma da bactéria Xanthomonas citri, responsável pelo
cancro cítrico, e de quatro tipos de vírus. Ocorre que a legislação brasileira,
seguida fielmente pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), não
permite o patenteamento de seres vivos.
Nossa inexperiência no trato com patentes é grande.
Empresas, pesquisadores e inventores brasileiros não têm mais que algumas
dezenas de patentes concedidas pelo USPTO, escritório norte-americano de
patentes, num universo de mais de 100 mil patentes concedidas anualmente.
Visando ampliar a cultura nacional e auxiliar os pesquisadores inventores
paulistas nesse assunto estratégico, a Fapesp recentemente inaugurou o Núcleo
de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec).
Garantia de
investimento Todo invento original que
seja útil e apresente potencial para
comercialização pode ser patenteado, em um ou mais países, assegurando a seus
titulares o direito de produção, uso ou exploração do produto ou processo
coberto pela patente nos países em que foi patenteado. A patente incentiva uma
contínua renovação tecnológica e garante retorno aos investimentos em pesquisa
das empresas sediadas no país.
A idéia por trás da patente é pôr o invento à disposição
do público. A palavra "patente", nessa acepção, vem do francês, e não
do latim. "Patent", como neologismo para privilégio de invenção, é a
abreviatura da expressão "Lettre Patent", nome original do documento
então emitido pelas autoridades francesas conferindo o privilégio a alguém. Para
que o titular seja motivado a publicar sua invenção, foram estipuladas leis que
asseguram incentivos autorais por um período limitado, que varia de 10 a 20
anos.
Que invenções podem ser patenteadas? A imaginação humana
desconhece fronteiras. Na galeria de patentes bizarras encontra-se um
"método para exercitar gatos" (US Patent 5443036). Os estatutos
norte-americanos de patentes definem quatro tipos de inventos para fins de
registro: novo processo (ou método), máquina (ou aparelho), artigo
manufaturado, ou novas composições da matéria.
Processos ou métodos são invenções que descrevem como
fazer algo. Uma reivindicação típica poderia ser: "método para fazer uma
sopa de legumes". As invenções de aparelhos são mais difundidas, máquinas
que façam algo como "escovar automaticamente os dentes". Artigos
manufaturados são inventos que usualmente se referem a produtos finais, que
geralmente não têm partes móveis (exemplo de patente possível: "fibra
óptica", acompanhada de descrição de sua estrutura). Composições da
matéria constituem o ponto mais controverso, e geralmente se referem às áreas
de química e biotecnologia.
Vidro bioativo Enquanto a matéria espontaneamente
existente na natureza não é patenteável, novos compostos e composições químicas
podem ser. Assim, um vidro bioativo, sintetizado pelo homem para substituição
de ossos e dentes, poderia ser patenteado, e já foi (U.S. Patent 5981412). Mas
não seus elementos constituintes, por serem naturais. É óbvio, portanto, que os
elementos químicos, minerais e pedras preciosas naturais não podem ser
patenteados, mesmo que novos materiais naturais venham a ser descobertos nas
profundezas da Terra ou em qualquer outro planeta. Os leitores podem imaginar
as consequências para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia se todos os elementos da tabela periódica tivessem
sido patenteados, cada um após a respectiva descoberta.
Numa patente se exige intervenção humana no projeto,
construção, síntese ou fabricação do produto (não confundir com descoberta). A
esses se adiciona um quesito bastante depurado e conhecido no meio patentário:
o da suficiência descritiva. Este conceito estabelece que o documento de
patente deve conter informações suficientes para que, a partir de sua leitura,
a invenção possa ser reproduzida. Em outras palavras, há que se diferenciar
invenção de descoberta. Ambas são resultantes de ações humanas, mas a primeira
resulta em nova composição, enquanto a segunda resulta no desvendamento de leis
universais ou da estrutura de matéria natural (partículas elementares, elementos
químicos, moléculas, genes e cristais).
A despeito dos discursos e promessas de governantes
contrários ao patenteamento de genes, já há alguns milhares dessas patentes concedidas
nesses países. O argumento mais comum é que patentes somente serão concedidas
quando a funcionalidade do gene estiver bem determinada. Ora, ainda assim
trata-se de descoberta e não de invenção. Por outro lado, é claro que
diagnósticos, terapias e medicamentos inventados a partir do descoberta da
funcionalidade genética podem e devem ser patenteados.
Como devemos proceder para proteger os recursos públicos
que viabilizam as descobertas dos cientistas brasileiros? Minha resposta, ainda
que a contragosto, é óbvia: devemos, temporariamente, até que a lógica e o bom
senso prevaleçam, adotar uma atitude preventiva contra a apropriação indevida
das nossas invenções,
isto é, patentea-las.
(Os
direitos autorais devido às descobertas
podem ser preservados de outras maneiras).
Edgar Dutra
Zanotto é professor titular da UFSCar
(Universidade Federal de São Carlos-SP), coordenador-adjunto da Diretoria
Científica da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e
membro titular da Academia Brasileira de Ciências.